Caio Bonfim perde aliança, vence ouro e faz história no Mundial de Atletismo em Tóquio

Caio Bonfim perde aliança, vence ouro e faz história no Mundial de Atletismo em Tóquio set, 20 2025

Uma aliança no chão, um ouro no peito

Uma cena improvável abriu caminho para um feito histórico: aos 3 km de prova, a aliança de Caio Bonfim caiu no asfalto. Em vez de travar, ele respirou, avisou os oficiais e seguiu no ritmo. Setenta e cinco minutos depois, o brasileiro cruzava a linha como campeão mundial dos 20 km marcha atlética em Tóquio, com 1h18min35s — média de 3min56 por quilômetro. Na semana anterior, ele já havia sido prata nos 35 km. Duas medalhas, duas distâncias, um mesmo recado: a marcha brasileira fala grosso no Mundial.

Com o ouro nos 20 km, o atleta de 34 anos, nascido em Sobradinho (DF), se tornou o brasileiro mais premiado na história dos Mundiais de Atletismo, chegando a quatro medalhas somadas em diferentes edições e deixando para trás a antiga igualdade com Claudinei Quirino. No trajeto para essa consagração, o detalhe da aliança virou anedota: Caio brincou depois que a esposa, Juliana, só o perdoaria pela perda se ele trouxesse o ouro. O resto a gente sabe.

A prova foi tensa do começo ao fim. O ritmo se quebrou quando o grupo da frente apertou a marcha na metade do percurso. Caio reagiu no momento certo, protegeu as curvas, evitou toques e executou ultrapassagens limpas para não correr risco com cartões. Ele sustentou a liderança no trecho final, resistiu aos ataques e cruzou isolado. Atrás dele, a disputa foi milimétrica: Zhaozhao Wang, da China, ficou com a prata (1h18min43s), e o espanhol Paul McGrath levou o bronze (1h18min45s).

O Brasil também celebrou a regularidade da equipe. Mateus Corrêa terminou em sétimo, com 1h21min04s, numa prova de alto nível técnico. Max Santos completou em 42º, com 1h27min34s. É um recorte honesto do estágio atual da marcha no país: um líder consolidado, uma segunda linha competitiva e espaço para crescer.

  • Ouro — Caio Bonfim (Brasil): 1h18min35s
  • Prata — Zhaozhao Wang (China): 1h18min43s
  • Bronze — Paul McGrath (Espanha): 1h18min45s
  • 7º — Mateus Corrêa (Brasil): 1h21min04s
  • 42º — Max Santos (Brasil): 1h27min34s

O relógio conta uma parte da história. A outra está na cabeça. Marcha é esporte de precisão sob pressão, fiscalizado a cada passo. Caio equilibrou técnica, tomada de decisão e frieza. E fez isso no cenário clássico de Tóquio: clima úmido, troca de esponjas e água nos pontos estratégicos, leitura de prova a cada volta. É nesse tipo de ambiente que a experiência pesa.

Da base familiar à consagração — e o que essa vitória muda

Da base familiar à consagração — e o que essa vitória muda

O caminho até Tóquio começa bem antes da largada. O pai de Caio, João Sena, professor de educação física, levou o atletismo para onde trabalhou. Dali nasceu a ponte para a mãe, Gianetti Sena, atleta treinada por ele e com índice olímpico na carreira. Em casa, o esporte não era visita: era rotina. Quando Gianetti se despediu das pistas, Caio já desenhava a própria jornada rumo aos Jogos.

Essa base explica duas coisas que aparecem no resultado: disciplina e persistência. Caio penou em quatro ciclos olímpicos até alcançar a medalha em Paris 2024. Nesse intervalo, bateu na trave, aprendeu a lidar com julgamentos, amadureceu nos detalhes técnicos e, aos 34 anos, encaixou uma temporada rara, com pódio duplo no Mundial e o ouro que faltava.

O episódio da aliança mostra outra camada: foco em meio ao caos. Ele perdeu um objeto com valor afetivo, tentou sinalizar a rota aos oficiais e, mesmo assim, manteve o padrão de movimento. Quem compete em marcha sabe o risco de qualquer distração: um quadril que desce demais, um joelho que flexiona além do permitido, um pé que perde contato com o solo por um instante. Tudo isso pode virar cartão.

Para quem não está acostumado com as regras, vale um resumo direto. A marcha atlética tem dois pilares: o pé precisa manter contato visual com o chão (nada de “voar” como na corrida), e o joelho da perna de apoio deve ficar estendido do momento do toque até a posição vertical. Árbitros espalhados ao longo do percurso monitoram os atletas. Três cartões vermelhos por infração levam à punição máxima, que pode ser desclassificação ou parada obrigatória na “penalty zone”, dependendo do regulamento da prova. Resultado: técnica limpa decide pódio.

É por isso que a vitória de Caio tem um peso extra. Ela quebra um velho preconceito em casa — a ideia de que a marcha é “menor” que outras provas do atletismo. Não é. Exige leitura tática fina, força específica, mobilidade de quadril, estabilidade de tronco e uma capacidade de sofrer que não aparece em vídeos rápidos. A medalha de ouro em Tóquio, somada à prata nos 35 km dias antes, desloca o eixo da conversa: a marcha virou referência brasileira, e não exceção.

Também há um efeito cascata. Com resultados no topo, a modalidade ganha mais visibilidade, mais garotos testam a prova nas escolas e nos projetos de base, e os centros regionais se sentem parte do mapa. Sobradinho, cidade do Distrito Federal que viu Caio crescer, vira símbolo disso: dá para revelar talento fora dos grandes polos, com planejamento e treino de longo prazo.

A engrenagem pessoal conta muito. Caio fez questão de dividir o ouro com Juliana. Segundo ele, foi ela quem segurou a convicção quando a dúvida apertou. Em alto rendimento, ter um círculo de confiança que não balança nas semanas ruins faz diferença. É o tipo de suporte que não aparece no resultado oficial, mas aparece no último quilômetro, quando a perna pesa e a cabeça decide.

Do ponto de vista esportivo, o 1h18min35s em Tóquio dá pistas sobre a preparação. Ritmo estável, resposta a trocas de liderança e final agressivo. É o recorte de um atleta que entende quando arriscar e quando preservar. Em marcha, excesso de ousadia custa caro: além do desgaste, cresce a chance de infração técnica. Caio navegou entre esses extremos com calma de veterano.

E a tal aliança? Ela virou personagem da prova e ajudou a revelar o bastidor humano por trás do uniforme. Até o fim, a busca ficou nas mãos da organização e dos voluntários, enquanto ele cumpria entrevistas e protocolo de pódio. O ouro, este sim, ninguém perde. E o pacto com a torcida — que vibra com a sinceridade dos campeões — só ficou mais forte.

O pódio em Tóquio também remonta a um debate quase invisível, mas central: como arbitrar com justiça em uma modalidade julgada a olho nu? A World Athletics tem testado sistemas de apoio tecnológico e ajustes de protocolo para reduzir subjetividade sem tirar a essência da prova. O que se viu na final foi um equilíbrio saudável: árbitros atentos, atletas conscientes e uma corrida definida no mérito.

Para o Brasil, a fotografia do Mundial é animadora. Um campeão consolidado, uma equipe que marca presença no top 10 e um horizonte aberto para novos nomes. Formação de base, calendário com mais provas de rua para marchadores e intercâmbio técnico com centros de referência aparecem como próximos passos naturais.

Enquanto isso, Caio sai de Tóquio com algo maior que uma volta olímpica. Ele reescreveu seu lugar na história do país nos Mundiais e aumentou o teto de ambição da marcha atlética brasileira. Ao transformar um tropeço no km 3 em combustível para o ouro, ele mostrou que, às vezes, o detalhe que cai no chão é o mesmo que levanta a carreira.